29.3.15

revelando os mundos contidos no mundo: uma análise sensível do recital do violonista Lucas Chagas


“Há um outro mundo, e ele está nesse mundo.”
Paul Éluard

Quando se diz ordinário se refere ao que é comum, habitual, que se repete com regularidade. A vida é ordinária. Pelo menos para a maioria de nós, pessoas comuns que vivem atreladas a um mundo já construído que nos limita de diversas formas. Reduz-nos principalmente pela linguagem: basicamente gesto, fala e pensamento. Assim, repetimos dia a dia os mesmos gestos, pensamos sempre muito restritamente nas mesmas coisas, falamos com as mesmas palavras decodificadas há muitos e muitos anos (na verdade, falamos até com menos palavras do que antes). Da mesma forma que expandimos, historicamente, pela linguagem, passamos agora por uma estagnação devida, também, a linguagem. Muitos foram os que tentaram, extrapolando a linguagem já construída e posta, libertar a si e os outros. Libertar-nos como seres além humanos. Ou então como seres de fato humano, com toda a potencialidade que ser humano contém.

É que olhando para a realidade como ela é, fazendo os gestos necessários no dia-dia, pensando o que é justo para cumprir as tarefas, falando somente para comunicar o já sabido, vamos fortalecendo um mundo. Um único mundo que já existe e que está aí, construído. Um mundo que foi feito para servir a si próprio, descartando nossas reais necessidades de libertação, expansão e transcendência. Nesse mundo, há um outro mundo. Ou outros mundos? Realidades por trás da realidade?

Há momentos em que, por motivos diversos, outras realidades são instauradas. Um outro mundo se revela naquele mesmo mundo de sempre. Do que não se imagina que possa extrair nada o invisível se faz visto. Ou sentido. Ou vivido. Momentos como esses estão cada vez mais incomuns e é preciso muita atenção, muita astúcia e muita sutileza para se alcançar lugares assim. Pontos discretos de transcendência. Momentos de realização do indizível. Atos de transcendência da linguagem.

Esses pontos/momentos/atos podem acontecer na arte. Um desses aconteceu numa sala aparentemente comum, com cadeiras espalhadas em frente a um pequeno palco. Lá em cima estava Lucas Chagas. Na verdade a coisa começa a acontecer antes, quando vindo de algum lugar misterioso ouve-se o som das cordas do violão sendo provocadas. O som chegou manso, brincalhão, vindo como num jogo de esconde-esconde até nossos ouvidos, nos instigando a já começar sentir além. Em seguida veio ele, o causador do som, entrada discreta e tranqüila, com um sorriso maroto de quem sabe o que está por vir. Ele senta na cadeira, arruma com calma cada detalhe: o apoiador de pés, o tripé que segura o livreto de partituras, a página certa do próprio livreto, os tapetinhos que amortecem o apoio do violão nas pernas, um equipamento que se gruda no violão para ajudar nesse apoio, enfim, todos os detalhes que um violinista clássico precisa (ou fingi precisar) para fazer sua mágica. E a canção/poção logo começa.

Carulli, Carcassi, Sor, Giuliani, Coste, Aguado, Bach, Mozart, Powell, Paulinho da Viola.  Entre eles o Chagas, com suas pausas únicas, sua respiração concentrada, os dedos dançantes, o olhar que acompanha cada variação rítmica. Um jeito todo particular. Uma performance especial. O mais tocante em um recital assim é poder - além de ouvir a música em seu estado mais puro, saída direto do instrumento que lhe dá vida - ver os detalhes de cada gesto do músico, cada pequeno movimento de sobrancelhas, dedos, ombro, pé. É ver a arte saindo da vida, do corpo-alma do artista em estado de pulsão.

Quanto ao público restava abrir-se para a sensibilidade que lhe era possível e ver surgir, diante de si, os outros mundos escondidos naquele mundo. Através das notas que se organizavam no tempo/espaço os mundos iam se construindo sem limitações, sem barreiras, sem constrangimentos. Mundos que nos fazem ir além da linguagem, ir além do pensamento habitual, da fala habitual, do gesto habitual. Mundos que nos fazem perceber o que normalmente está escondido. Nos perceber. Mundos de transcendência.

O recital aconteceu no dia 28/03/2015, na cidade de Indaiatuba, interior de São Paulo.
Você pode conhecer o músico Lucas Chagas em seu facebook.

2 comentários:

  1. Fico sem palavras para tanta palavra bem colocada. Já sei quem chamarei para escrever o texto do encarte de meu primeiro Cd autoral. Abraços eTernos, amigo.

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